O calor ataca
Por Alice Vieira
Venho para a Ericeira desde criança. É e foi sempre um caso de paixão e, como todos sabem, as paixões não se discutem e muitas vezes nem se entendem. As poucas vezes em que deixávamos a Ericeira era—imagine-se!—no verão: como vivíamos sempre numa praia, quando chegava Agosto fazíamos a trouxa e íamos para Aveiro.
Claro que Aveiro tinha — e tem — grandes praias, mas nós nem lá púnhamos os pés porque o que nós queríamos era ir num barco até à “bruxa” (um grande café), ou ir à Fábrica da Vista Alegre comprar por uns míseros tostões as peças com algum (pequeníssimo) defeito que a fábrica punha à venda numas escadas perto da estrada.
E depois voltávamos para a Ericeira. Ou seja: para o frio, para os edredões na cama, para o sol a nascer só lá para depois das quatro da tarde.
Mas nós gostávamos daquele mau tempo. Nessa altura havia um programa na televisão feito pelo Prof. José Hermano Saraiva, que era nosso amigo. Nessas alturas, ele metia-se connosco, e dizia não perceber por que gostávamos daquela praia que, nas suas palavras, “não tinha banhistas mas apenas devotos”.
Ponto final parágrafo.
Ontem ainda me ri a pensar no que diria o prof. José Hermano Saraiva se me visse aquela altura a chegar aqui a casa… com uma enorme ventoinha!!!
Pois é verdade. Como muito bem sabem os que cá vivem tem feito um calor que não se aguenta… De madrugada venho à varanda e não corre uma aragem. Nem o mais leve lençol se aguenta na cama, dormimos com as janelas todas abertas.
As mudanças climatéricas estão a dar cabo disto tudo.
A gente gosta deste calorzinho e ri-se.
Mas vamos amargá-lo, ai isso vamos.
Alice Vieira
Atualmente colabora com a revista “Audácia”, e com o “Jornal de Mafra”.
Publica também poesia e é considerada uma das mais importantes escritoras portuguesas de literatura infanto-juvenil.
Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Alice Vieira